64. O paralítico curado em Cafarnaum.
9 de novembro de 1944.
[…].
No mesmo dia 9 de novembro, logo depois.
64.1Vejo as margens do lago de Genezaré. E vejo os barcos dos pescadores, arrastados para a margem. Junto a eles estão Pedro e André, ocupados em consertar as redes, que os empregados levam, gotejantes, depois de as terem enxaguado no lago, para limpá-las dos detritos que nelas ficaram presos. À distância de uns dez metros, João e Tiago, encurvados sobre seu barco, estão ocupados a pô-lo em ordem, ajudados por um empregado e por um homem de seus cinqüenta a ciqüenta e cinco anos, que eu penso ser Zebedeu, porque o empregado o chama de “patrão”, e porque ele é muito parecido com Tiago.
Pedro e André, de costas para o barco, trabalham em silêncio para reatar os fios e as bóias de sinal. De vez em quando, trocam algumas palavras, a respeito do trabalho deles que, pelo que eu pude entender, foi infrutífero.
Pedro se queixa, não pela bolsa vazia, nem pelo trabalho inútil, mas diz:
– Isso me aborrece porque… como faremos para alimentar aqueles pobrezinhos? A nós só são feitas raras ofertas, e aquelas dez moedas e sete dracmas que recolhemos nestes quatro dias, nelas eu não toco. Só o Mestre me deve indicar a quem e como vão ser dadas aquelas moedas. E até o
sábado Ele não volta! Se eu tivesse feito uma boa pesca!… O peixe mais miúdo, eu o cozinharia, e o daria àqueles pobres… e, se alguém em casa
resmungasse, eu não daria importância a isso. Os sãos podem ir procurá-lo.
Mas os doentes!…
– Aquele paralítico, por exemplo!… Andaram tanto para trazê-lo aqui…
–diz André.
– Escuta, meu irmão. Eu penso… que não se pode estar divididos, e não sei porque o Mestre não nos quer sempre com Ele. Ao menos… eu não veria
mais estes pobrezinhos que não posso socorrer, e quando eu os visse poderia lhes dizer: “Ele está aqui.”
64.2 – Estou aqui!
Jesus se aproximou deles devagar caminhando sobre a areia molhada.
Pedro e André dão um pulo. Gritam:
– Oh! Mestre!
Chamam os outros:
– Tiago! João! O Mestre! Vinde!
Os dois chegam correndo. E todos abraçam Jesus. Um lhe beija a veste, outro as mãos; João ousa passar-lhe um braço ao redor da cintura e pousar a
cabeça sobre o seu peito. Jesus o beija sobre os cabelos.
– De que estáveis falando?
– Mestre… dizíamos que Te desejaríamos aqui.
– Para que, amigos?
– Para ver-te e vendo-te, te amar e, depois, por causa dos pobres e doentes. Estão à tua espera há dois ou mais dias… Eu fiz o que podia.
Coloquei-os lá, estás vendo aquela cabana naquele campo inculto? Lá os operários do barco trabalham fazendo reparos. Lá coloquei abrigado um
paralítico, um que tem febre alta, e um menino que está morrendo sobre o seio de sua mãe. Eu não podia mandá-los à tua procura.
– Fizeste bem. Mas, como pudeste socorrê-los e quem foi que os trouxe?
Me disseste que são pobres.
– É verdade, Mestre. Os ricos têm carros e cavalos. Os pobres, só as pernas. Não podem ir atrás de Ti diligentes. Eu fiz o que pude. Olha: este é o
donativo que eu recebi. Mas não toquei em nenhuma moeda. Tu é que farás isso.
– Pedro, tu podias tê-lo feito. Certo… Meu Pedro, me desagrada saber que por causa de Mim tu tenhas que sofrer censuras e passar canseiras.
– Não, Senhor. Não deve desagradar-te isso. Eu não tenho dor. Somente o que me desagrada é não ter podido fazer maior caridade. Mas, podes crer,
eu fiz, todos nós fizemos tudo o que pudemos.
– Eu sei. Sei que trabalhaste e sem resultado. Mas, se não há comida, a tua caridade permanece viva, ativa e santa aos olhos de Deus.
64.3Uns meninos chegaram gritando:
– O Mestre está aqui! O Mestre está aqui! Eis aqui Jesus! Eis aqui Jesus!
Abraçam-se a Ele, que os acaricia, mesmo falando com os discípulos.
– Simão, Eu vou entrar em tua casa. Tu e vós ide dizer que Eu vim;
depois, trazei-me os doentes.
Os discípulos saem rapidamente em diferentes direções. Mas, que Jesus já tenha chegado, toda Cafarnaum o sabe, graças aos pequeninos que
parecem umas abelhas ao formarem enxame e que, depois, partem da colméia para as mais diversas flores: as casas, neste caso, as ruas, as
praças. Eles vão e vêm festivos, levando a notícia às mamães, aos transeuntes, aos velhos sentados ao sol; depois voltam para serem
acariciados por Aquele que os ama. Um deles, audaz, diz:
– Fala a nós, para nós hoje, Jesus! Nós te queremos bem, Tu sabes, e somos melhores que os homens.
Jesus sorri para o pequeno psicólogo e promete:
– Falarei especialmente para vós.
E, seguido pelos pequenos, vai até à casa, entra, saudando com a sua saudação de paz:
– A paz esteja nesta casa.
O povo se aglomera na grande sala posterior, destinada às redes, cabos, cestas, remos, velas e provisões. Vê-se que Pedro a colocou à disposição de
Jesus, amontoando tudo em um canto, para dar mais espaço. O lago não se vê daqui. Ouve-se dele apenas o marulho lento. O que se vê é só o muro
esverdeado do pomar, onde está a velha videira e a figueira frondosa. As pessoas estão até na estrada, transbordando da sala para o pomar, e deste
para a estrada.
64.4 Jesus começa a falar. Na primeira fila — tendo aberto caminho com gestos prepotentes e graças ao temor que deles tem o povo — estão cinco
pessoas… influentes. Paludamentos, vestes ricas e soberba, os denunciam como fariseus e doutores. Mas Jesus quer ter ao seu redor os seus pequenos.
Uma coroa de rostinhos inocentes, de olhos luminosos, de sorrisos angelicais, levantados para Ele. Jesus fala, e ao falar, acaricia de vez em quando a cabecinha encaracolada de um menininho que está sentado aos seus pés, com a cabeça encostada aos seus joelhos sobre o bracinho dobrado.
Jesus fala sentado sobre um grande monte de cestas e redes.
– “O meu dileto desceu ao seu jardim, ao canteiro dos aromas, a apascentar por entre os jardins e a colher lírios… ele que se deleita entre os
lírios”, diz Salomão [109] de Davi, do qual Eu venho, Eu, o Messias de Israel.
O meu jardim! Qual jardim mais bonito e mais digno de Deus e do Céu, onde as flores são os anjos criados pelo Pai? Contudo, não. Um outro jardim
quis o Filho unigênito do Pai, o Filho do homem, porque pelo homem Eu tenho a carne, sem a qual Eu não poderia redimir [110] as culpas da carne do
homem. Um jardim que poderia ser pouca coisa inferior ao celeste, se do Paraíso terrestre se tivessem espalhados, como mansas abelhas de uma
colméia, os filhos de Adão, os filhos de Deus, para povoar a terra com uma santidade toda destinada ao Céu. Mas o Inimigo semeou abrolhos e espinhos no coração de Adão e os abrolhos e os espinhos desse coração extravasaram sobre a terra. Agora, já não há jardim, mas um mato áspero e cruel, no qual mora a febre e se aninha a serpente.
Mas o Dileto do Pai também tem ainda um jardim nesta terra, sobre a qual impera Mamon. O jardim no qual Ele vai nutrir-se do seu celeste alimento: amor e pureza; o canteiro do qual Ele colhe as flores que lhe são caras, no qual não há mancha de sensualidade, de cobiça, de soberba. Estes.
(Jesus acaricia o maior número de crianças que pode, passando sua mão sobre aquela coroa de cabecinhas atentas, uma única carícia que os toca de
leve e os faz sorrir de alegria). Eis os meus lírios.
Não teve Salomão, em sua riqueza, veste mais bonita do que o lírio que perfuma o vale, nem diadema de graça mais delicado e esplêndido do que
aquele que tem o lírio em seu cálice de pérola. No entanto, para o meu coração, não há lírio que valha o que vale um destes. Não há canteiro, não há
jardim de ricos, todo cultivado com lírios, que Me valha o que vale um só destes puros, inocentes, sinceros, simples pequeninos.
Ó homens, ó mulheres de Israel! Ó vós, grandes e humildes, pelo censo ou por vosso cargo, ouvi! Vós estais aqui porque quereis conhecer-me e
amar-me. Então ficai sabendo qual é a primeira condição para serdes meus.
Eu não vos digo palavras difíceis. Não vos dou exemplos mais difíceis ainda. Eu só vos digo: “Tomai a estes como exemplo.”
Quem entre vós não tem em casa um filho, um sobrinho, um pequeno irmão ainda na infância, na meninice? Não é um descanso, um conforto, um
vínculo entre os esposos, entre os parentes, entre os amigos, um destes inocentes, cuja alma é pura como uma aurora serena, cujo rosto afugenta as
nuvens e incute esperanças e cujas carícias enxugam lágrimas e infundem força de vida? Por que é que existe neles tanto poder? Neles, ainda fracos,
indefesos e ignorantes? Porque têm Deus em si, têm a força e a sabedoria de Deus. A verdadeira sabedoria: sabem amar e crer. Sabem crer e querer.
Sabem viver nesse amor e nessa fé. Sede como eles: simples, puros, amorosos, sinceros, crentes.
Não há sábio em Israel que seja maior do que o menor destes, cuja alma é de Deus e dela é o seu Reino. Benditos pelo Pai, amados pelo Filho do
Pai, flores do meu jardim, a minha paz esteja convosco e com aqueles que vos imitarem por meu amor.
Jesus terminou.
64.5 – Mestre! – grita Pedro do meio da multidão–, aqui estão os doentes.
Dois podem esperar que Tu saias, mas este está comprimido por esta multidão e, além disso, não se aguenta mais… E nós não podemos passar.
Devo mandá-lo de volta?
– Não. Descei-o pelo telhado.
– Está bem. Vamos fazer isso já.
Ouve-se o barulho dos pés sobre o telhado baixo da sala que não sendo propriamente uma parte da casa não tem por cima nenhum assentamento com
argamassa, mas somente um telhadinho de madeira coberto de cascalhos semelhantes a ardósia. Mas não sei que pedra era. Eles fazem uma abertura
e, por meio de cordas, fazem descer a pequena padiola sobre a qual está o doente. Desce exatamente diante de Jesus. O povo se aglomera mais ainda
para ver.
– Tiveste grande fé, e contigo também quem te trouxe.
– Oh! Senhor! Como não ter fé em Ti?
– Portanto, Eu te digo: filho (o homem é muito jovem) são-te perdoados todos os teus pecados.
O homem o olha chorando… talvez se sinta um pouco decepcionado, porque esperava a cura do corpo.
Os fariseus e os doutores cochicham entre si, torcendo o nariz, a fronte e a boca, com desdém.
– Por que estais murmurando, e mais ainda com o coração do que com os lábios? Segundo vós é mais fácil dizer ao paralítico: “Estão perdoados os
teus pecados”, ou dizer-lhe: “Levanta-te, pega a tua cama e anda”? Vós pensais que só Deus pode perdoar os pecados. Mas não sabeis responder o
que é mais importante, porque este, tendo perdido a tal ponto a saúde do corpo, gastou seus haveres para recuperá-la, sem nada conseguir. Não o
pode, a não ser por Deus. Ora, para que saibais que tudo Eu posso, para que saibais que o Filho do homem tem poder sobre a carne e sobre a alma, na
terra e no Céu, Eu digo a este: “Levanta-te, toma a tua cama e anda. Vai para a tua casa e sê santo.”
O homem sente um choque, dá um grito, põe-se de pé, lança-se aos pés de Jesus, beija-os e os acaricia, chora e ri; com ele os parentes e a multidão
que, depois, se abre para deixá-lo passar, como se fosse em triunfo, e o segue toda festiva. A multidão, não os cinco invejosos, que vão-se embora,
altivos e duros como estacas.
64.6Assim pôde entrar a mãe com seu pequenino: uma criança ainda de peito, esquelética. Ela o estende, e diz só isto:
– Jesus, Tu amas a estes. Tu o disseste. Por este amor e por Tua mãe!…
–e chora.
Jesus pega o bebê que está mesmo à morte, coloca-o sobre o seu coração, mantém-no assim por um momento, com aquele rostinho céreo, os
lábios arroxeados e as pálpebras já fechadas, leva-o de encontro à sua boca.
Mantém-no assim por um momento…, e quando o afasta de sua barba loira, o rostinho já está rosado, a boquinha já faz um daqueles sorrisos incertos,
como as crianças fazem, os olhinhos olham ao redor, vivos e curiosos, as mãozinhas, antes fechadas e abandonadas, apalpam entre os cabelos e a
barba de Jesus que ri.
– Oh! Meu filho! –grita a mãe feliz.
– Pega-o, mulher. Sê feliz e boa.
E a mulher pega o filho renascido e o aperta ao seio. O pequenino reclama logo os seus direitos ao alimento e procura, abre, encontra e mama,
mama, ávido e contente.
Jesus abençoa e dá uns passos até à porta onde está o doente de febre alta.
– Mestre! Sê bom!
– E tu também. Usa a saúde na justiça.
Jesus o acaricia e sai.
64.7Volta à margem, seguido, precedido, louvado por muitos que suplicam:
– Nós não te ouvimos falar. Não pudemos entrar. Fala a nós também.
Jesus faz sinal que sim e como a multidão o aperta, a ponto de quase sufocá-lo, ele entra no barco de Pedro. Não basta. O assédio é premente.
– Leva o barco para o mar e afasta-te um pouco da margem.
A visão termina aqui.
[109] diz Salomão, em: Cântico dos cânticos 6,2-3.
[110] sem a qual Eu não poderia redimir, não porque fosse indispensável a encarnação para redimir, mas porque essa corresponde à vontade do Pai à qual adere a obediência do Filho: isto deduz-se de todo o contexto da obra valtortiana. A realidade da encarnação do Verbo é afirmada, por exemplo, em 207.11 e em 587.3; e a sua razão de ser é explicada em: 69.5 – 96.5 (o redentor não podia ser um anjo) – 126.3 – 167.13 – 281.16 – 444.7 – 487.6 – 498.5 –567.23. (Significado bem diferente tem a encarnação da qual trataremos em nota a 587.3).
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