A interpretação da pessoa de Jesus que se impôs na história cristã (que é a história do cristianismo universal) é a interpretação da fé cristã que os discípulos proclamaram à luz da páscoa: esse homem Jesus é o “Cristo”, isto é, um ser enviado e “ungido” por Deus, o próprio Filho de Deus, a expressão humana, encarnada, do próprio Deus (do que Ele é para nós) e da resposta que um ser plenamente humano como Jesus pôde dar a Deus. Durante muitos séculos, praticamente dois milênios, essa síntese entre fé e história foi vivida de maneira espontânea e pacífica; os evangelhos foram lidos, interpretados e vividos como sendo a tradução imediata da história real de Jesus, como verdadeiras “biografias” do acontecido com ele.
Foi a partir do século XVIII, com a crítica racionalista aplicada a todos os âmbitos do saber, que se operou uma mudança progressiva na maneira de abordar os textos do Novo Testamento como textos literários, aos quais se podia e devia aplicar também a crítica literária e histórica.
Os chamados métodos exegéticos histórico-críticos propriamente ditos só viram a luz no início do século passado. A partir desse momento em muitas instâncias exegéticas e teológicas se introduziu uma ruptura entre o chamado “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, como se fosse possível separá-los a não ser do ponto de vista metodológico. Mas ao opor o chamado “Jesus histórico” ao “Cristo da fé”, o que poderia ser válido como distinção metodológica se transformou numa espécie de dogma teológico: a história em oposição à fé; o verdadeiro Jesus seria o “Jesus histórico” (entenda-se: o que a exegese possa afirmar como certeza histórica) em contraste com o “Cristo da fé” eclesial.
O Jesus real foi muito mais
Essa separação ou ruptura radical foi prejudicial tanto para a exegese como para a teologia. O “Jesus histórico”, assim entendido, acabou sendo um resíduo extremamente frágil do que a crítica exegética podia afirmar com toda certeza a respeito de Jesus.
Na verdade o Jesus real, o que experimentaram e viram do Jesus da história os que com ele conviveram, foi muito mais do que ficou registrado ou do que a exegese possa desentranhar dos textos. Por outro lado, o Cristo da fé cristã não foi nem pode ser uma abstração separada do Jesus da história. Tudo o que a fé cristã afirma de Jesus o afirma da história concreta desse homem de Nazaré. É inegável que a problemática da crítica histórica repercutiu sobre a maneira de ler os evangelhos atualmente e de fazer teologia e indiretamente sobre o povo cristão. Mas, tomada no seu conjunto de mais de dois séculos, o seu resultado foi para a fé cristã: Hoje sabemos ler os evangelhos não como biografias, mas como relatos do sentido da vida de Jesus à luz da fé. E distinguimos com clareza o que pertence ao conteúdo da fé e o que foram as suas interpretações teológicas ao longo da história?
A dimensão da figura humana de Jesus
Um dos perigosos resultados dessa tumultuada crítica histórica foi infelizmente nos ter obrigado a voltar-nos definitivamente para a dimensão da figura somente humana de Jesus e a sua significação para a vida do cristão e para a história humana. Desde os primórdios, a fé cristã considerou um desvio herético negar que Jesus tivesse vindo “na carne”, como diz S. João.
Para os primeiros cristãos era tão importante reconhecer Jesus como Filho de Deus do que confessá-lo vindo na carne e plenamente humano. Inseparavelmente. Por ser algo decisivo para a imagem e a experiência cristã de Deus, assim como para compreender o ser humano à luz do modelo de Jesus Cristo. Ora, é preciso reconhecer que a dimensão humana de Jesus tinha ficado na penumbra da fé, ofuscada pela afirmação da sua condição divina. Por isso, a recuperação da dimensão humana de Jesus trouxe um grande enriquecimento para fé e a experiência cristã, mesmo à custa de muitos sofrimentos e mal-entendidos. Porém, também foi totalmente ignorada a dimensão salvífica e reparatória de Jesus, como Filho de Deus, que nos redimiu de nossos pecados e nos chamou para não sermos feitos para a terra e sim para o Céu.
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