Estudo 42 – Mística Cidade de Deus – Escola da Divina Vontade

Os Três Fiat
Estudo 42 – Mística Cidade de Deus – Escola da Divina Vontade
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A magnanimidade

577. Também se inclui a magnanimidade e magnificência na virtude da
fortaleza, porque delas participam em alguma coisa e dão firmeza à vontade em matérias
com elas relacionadas. A magnanimidade induz a fazer grandes coisas, aqueles que
estimam a elevada honra da virtude. Daqui dizer-se que ela tem por matéria os grandes
honores e comunica aos magnânimos excelentes predicados como: aborrecer as
lisonjas e simuladas hipocrisias, porque amá-las é próprio de ânimos mesquinhos e
vis; não ser ambicioso, nem interesseiro, nem amigo do mais útil, mas sim do mais
honesto e elevado; não falar de si com jactância; ser pareimonioso em fazer
coisas pequenas para se reservar às maiores; ser mais inclinado a dar do que a receber.
Todas estas coisas são dignas de maior honra. Apesar disto, esta virtude não se
opõe à humildade, pois uma virtude não pode contradizer outra.
A magnanimidade torna o homem, mediante seus dons e virtudes,
merecedor de grandes honras, porém, sem as ter apetecido ambiciosa e desordenadamente.
A humildade, além disso, ensina-lhe referir as próprias virtudes a
Deus e desestimar-se a si mesmo, pelos defeitos e fraquezas da própria natureza
A dificuldade que apresentam estes grandes e nobres atos de virtude,
exige especial fortaleza que vem a ser a magnanimidade. Seu equilíbrio consiste
em controlar as energias nas grandes ações, a fim de que nem as deixemos por pusilanimidade, nem as empreendamos com presunção ou desordenada ambição e apetite de vangloria, pois todos estes vícios os
magnânimos os desprezam.

A magnificência

578. A magnificência também visa realizar grandes coisas. Neste sentido
lato pode ser considerada virtude comum que, em todas as matérias virtuosas, faz
coisas grandes. Contudo, como há especial razão ou dificuldade em fazer grandes
despesas, ainda que seja conforme à razão, por isto chama-se magnificência especialmente a virtude que determinadamente inclina a grandes gastos.
Devem, contudo, regular-se pela prudência, para que o ânimo nem seja escasso, quando a razão pede muito, nem
tampouco seja pródigo, quando não convém, e saiba cortar o inconveniente. Esta
virtude parece ser a mesma que a liberalidade, se bem que os filósofos façam distinção
entre elas. O magnífico visa coisas grandes, sem outras considerações, enquanto
que o liberal atende ao amor e moderado uso do dinheiro. Assim, alguém poderá ser
liberal, sem chegar a magnífico, se se abstém de distribuir o que tem maior valor e quantidade.

A magnanimidade em Maria Santíssima

579. Estas duas virtudes, magnanimidade e magnificência, possuiu-as a
Rainha do céu com algumas propriedades.
que os demais não puderam ter. Somente Maria Puríssima não encontrou dificuldade,
nem resistência, para realizar todas as coisas grandes. Só Ela transformou todas
mesmo pequenas, em grandes. Só Ela entendeu perfeitamente a natureza
propriedades destas virtudes como de todas as mais.
Assim lhes pôde conferir a suprema perfeição, sem restringi-las pelas
inclinações contrárias, ou pela ignorância no modo de praticá-las. O atender a outras
virtudes também não a embaraçava, como costuma suceder ainda aos mais santos e
prudentes que, não conseguindo tudo abranger, fazem só o que lhes parece melhor.

Em todas as obras virtuosas foi esta senhora tão magnânima, que sempre
fez o mais elevado e digno de honor e glória. Merecendo recebê-la de todas as
criaturas, foi a mais magnânima em a desprezar e pospor, para referi-la só a Deus.
Praticou, dentro da humildade, o mais perfeito e magnânimo desta virtude.
Como os atos heróicos da humildade, divinamente competem com o
magnânimo das virtudes, subsistiam em Maria todas reunidas, como ricas jóias,
porfiando em formosa variedade, para adornar a filha do Rei, cuja glória residia
toda em seu interior, como disse David, seu pai (SI 44, 14).

A magnificência em Maria Santíssima

580. Na magnificência também se mostrou grande nossa Rainha, pois embora fosse pobre,
principalmente de espirito, sem amor a coisa alguma terrena, contudo,
de quanto o Senhor lhe deu, distribuiu magnificamente. Assim fez, quando os Reis
Magos (Mt 2, 11) ofereceram preciosos dons ao menino Jesus e depois durante o
tempo que viveu na Igreja, após a ascensão do Senhor ao céu.
A sua maior magnificência consistiu em que, sendo Senhora de toda a
criação, tudo destinou para magnificamente (quanto era de seu desejo) ser gasto em
benefício dos necessitados, e para a honra e culto de Deus. A muitos ensinou esta
doutrina e virtude.
Foi mestra de perfeição, em obras que os mortais em conseqüência de vis
costumes e más inclinações, realizam tão mal e sem a prudência devida. Geralmente
desejam os mortais, segundo sua inclinação, a honra e glória da virtude, para serem
tidos por grandes e singulares. Esta inclinação e afeto coloca-os fora da verdadeira
ordem, porque não dirigem esta glória ao Senhor de tudo. Daí, não acertarem os
meios, e quando encontram ocasião de fazer algum ato de magnanimidade ou
magnificência, fraquejam e não realizam, por serem de ânimos apoucados e vis.
Querendo, por outro lado, parecer grandes, excelentes e dignos de veneração,
usam de outros meios errados e verdadeiramente viciosos, fazendo-se iracundos,
infatuados, impacientes, carrancudos, altivos e jactanciosos.
Como todos estes vícios não são magnanimidade, mas revelam mesquinhez
e baixeza de coração, não conseguem entre os sábios glória nem honra e, sim, vitupério
e desprezo. Mais se encontra a honra dela fugindo, do que a procurando; mais com
obras, do que com desejos.

 

CAPITULO 12
A VIRTUDE DA TEMPERANÇA EM MARIA SANTÍSSIMA

Definição e utilidade da temperança

 

A criatura apetece o bem sensível e repele o mal. Este último movimento modera-o
com a fortaleza, que serve, como disse, para a vontade não se deixar
vencer pela paixão irascível, mas vença com coragem, mesmo a custa de padecer
qualquer mal sensível, a fim de conseguir o bem honesto.
Os outros movimentos da paixão
concupiscível governam-se com a temperança, última e menor das virtudes cardeais.
O bem alcançado não é tão geral como aquele visado pelas outras virtudes,
porque a temperança procura alcançar o bem particular de quem a possui.
Definem os doutores e mestres a temperança como universal moderação de
todos os apetites naturais, sendo, neste sentido, virtude geral e comum,
compreendendo todas as virtudes que movem o apetite de acordo com a razão.
Não tratamos agora da temperança neste sentido geral, mas só enquanto governa
o concupiscível na matéria do tato, onde o deleite move com maior
força e conseqüentemente, em outras matérias deleitáveis,
que imitam o deleite do tato, ainda que com menos intensidade.

Efeitos da temperança e do vício contrário

584. Assim considerada, a temperança ocupa o último lugar entre as
virtudes, porque seu objeto não é tão nobre como o das outras. Não obstante,
são-lhe atribuídas algumas excelências maiores, porque afasta de objetos e vícios
mais feios e aborrecíveis, como a intemperança nos deleites sensitivos, comuns
ao homem e aos brutos irracionais.
Por isto, disse David (SI 48,13¬21), o homem tornou-se semelhante ao
jumento quando se deixou levar pela paixão do deleite. Pela mesma razão, o vício da
intemperança chama-se pueril, porque a criança não se move pela razão, mas pelo
capricho do apetite, e só se modera pelo castigo.
Pedindo à paixão concupiscível que se refreie nestes deleites, a virtude da
temperança redime o homem deste indecoro, ensinando-o a governar-se não pelo
deleite, mas pela razão. A esta virtude se atribui certa honestidade, decoro e formo
sura que ela transfere ao homem, quando este se mantém dentro da razão, contra uma
paixão tão indômita, que poucas vezes a escuta e lhe obedece. Se, pelo contrário, o
homem se sujeita ao deleite animal, seguelhe grande desonra pela semelhança bestial
e pueril que adquire.

Outras virtudes encerradas na temperança

Na temperança estão compreendidas as virtudes da abstinência e
sobriedade, em oposição aos vícios da gula na comida, e da embriaguez na bebida.
Na abstinência está compreendido o jejum.
São estas as primeiras virtudes, porque a primeira coisa que se oferece ao apetite é o
objeto do gosto, para conservar a natureza.
Depois destas virtudes seguemse as que moderam o uso da propagação
natural, a castidade e pudor, compreendendo a virgindade e continência, em
contraposição aos vícios da luxúria, incontinência e suas espécies. A estas virtudes,
que são as principais da temperança, seguem-se outras que abrandam o apetite em
outros deleites menores. As que moderam os sentidos do olfato, ouvido e vista se
reduzem às do tato.
Há, porém, outras semelhantes: a clemência e mansidão que governam a ira
e a desordem no castigar, as quais podem transformar-se em crueldade desumana ou
bestial. A modéstia encerra quatro virtudes: – a humildade, oposta à soberba, que
detém o homem a não apetecer desordenadamente a própria excelência; a estudiosidade para não apetecer saber mais do que convém e como convém, contrapondo-se ao vício da curiosidade; a moderação
ou austeridade, para não apetecer o fausto, supérfluo e ostentação no traje e aparência
exterior; a que modera o apetite desmedido nos exercícios físicos, como os jogos
movimentos do corpo, divertimentos, dança, etc. Esta virtude é muito necessária e
geralmente se chama modéstia ou temperança.

A temperança em Maria Santíssima

586. Para manifestar a excelência que estas virtudes alcançaram na Rainha
do céu, assim como expliquei das outras sempre tenho por insuficientes os termos
e palavras comuns, que usamos para falar das virtudes das outras criaturas. Maior
proporção tiveram as graças e dons de Maria Santíssima com as de seu diletíssimo Filho, e estas com as perfeições divinas, do que todas as virtudes e santidade dos santos
comparadas com as desta soberana Rainha das virtudes.
Daqui vir a ser muito desproporcionado, quanto Dela podemos dizer com
palavras, empregadas para explicar as graças e virtudes dos demais santos. Nestes,
por mais consumadas que fossem suas virtudes, encontravam-se em criaturas
imperfeitas, sujeitas ao pecado e por ele desordenadas.
Se, a respeito destas criaturas disse o Eclesiástico (Eclo 26, 20) que
não se poderia fazer digna ponderação da
excelênciado casto, que diremos da temperança da Senhora das graças e virtudes, e
da formosura de sua alma santíssima, repleta da plenitude de todas elas?
Todos os domésticos desta Mulher forte (Pr 31,21) estavam guarnecidos
com duplicadas vestes, porque suas potências estavam adornadas com dois
hábitos ou perfeições de incomparável formosura e fortaleza: o da justiça original,
que subordinava os apetites à razão e à graça; e os hábitos infusos,
que acrescentavam nova beleza e energia para agir com suma perfeição.

Diferença entre a temperança dos santos e a de Maria Santíssima

587. Todos os santos que se distinguiram na perfeição da temperança, terão
chegado a sujeitar a indômita paixão concupiscível ao jugo da razão, para não
apetecer, fora da ordem, o que depois teriam que reparar com a dor de o haver
apetecido. Quem se adiantasse até aí, conseguiria negar ao apetite tudo aquilo que
se pode subtrair à natureza humana sem destruí-la. Nestes atos de temperança,
porém, sentiria alguma dificuldade, que retardaria o afeto da vontade. Pelo menos,
certa resistência, que o impediria de conseguir plenamente seu desejo e, com o
Apóstolo, queixar-se-ia do infeliz jugo deste pesado corpo (Rm 7, 24).
Em Maria Santíssima não havia esta discordância, pois os apetites, sem
pretensões e sem se antecipar à razão, deixavam todas as virtudes operar com tal
sintonia e acordo que, fortalecendo-a como exércitos de esquadrões bem ordenados
(Ct 6, 3), formavam um coro de celestial harmonia.

Além, disso, não tendo desvios do apetite a reprimir, de tal modo exercitava
os atos da temperança, que em sua mente não puderam penetrar imagens ou memórias de movimentos desordenados. Ao contrário, imitando as divinas perfeições,
suas operações eram como que originadas e copiadas daquele divino exemplar, a Ele
se dirigindo como a única regra de perfeição e último fim a que tendiam.

A abstinência e sobriedade de Maria Santíssima

588. A abstinência e sobriedade de Maria Santíssima constituíram admiração
para os anjos. Sendo Rainha de toda a criação, e estando sujeita às naturais
paixões da fome e sede, jamais apeteceu finos
manjares à altura de sua grandeza e poder, nem usava do alimento por gosto, mas
apenas pela necessidade. A esta satisfazia com tal temperança que nem excedia, nem
pôde exceder, além do exato necessário para a conservação da vida. Protelava um
pouco o alimentar-se, para sentir fome e sede, e deixar à graça ocasião de agir,
juntamente com o natural efeito do escasso alimento recebido. Nunca sofreu
alterações orgânicas por excesso ou falta de comida ou bebida, nem por esta falta
sentiu mais necessidade, nem a teve num dia mais de no outro. Se delas se abstinha
um pouco mais do que a natureza pedia, era alimentada pela graça, da qual também vive
a criatura, e não apenas de pão (Mt 4, 4).
Bem poderia o Altíssimo sustentá-la sem comida e bebida, porém,
não o fez para não privá-la do merecimento, e nós do exemplo de sua temperança.
Sobre a qualidade e horário de sua alimentação, fala-se em diferentes lugares desta
História . Por sua própria vontade nunca comeu carne, nem mais de uma única
vez por dia, salvo quando viveu com seu esposo José, e quando acompanhava seu
Filho Santíssimo. Nestas ocasiões, para acomodar-se aos outros, seguia a ordem
que o Senhor lhe dava. Sua temperança, porém, era sempre miraculosa.

A pureza de Maria

589. Da virginal pureza e pudor da Virgem das virgens, nem os supremos
serafins podem dignamente falar. Nesta virtude, que neles é natural,
foram inferiores à sua Rainha, porquanto, mediante
privilégio da graça e poder do Altíssimo,esteve Maria Santíssima mais imune do
vício contrário, do que os mesmos anjos que, por natureza, não podem ser por ele atingidos.
Nesta vida, nós, os mortais, não conseguimos formar o devido conceito
desta virtude na Rainha do céu: embaraçamos muito o pesado barro, que obscurece
em nossa alma a cândida e cristalina luz da castidade. Possuiu-a nossa grande Rainha,
em tal grau, que a pôde nobremente preferir à dignidade de Mãe de Deus, se
não fora aquela virtude a que mais a dispunha para esta inefável grandeza.
Medindo, porém, a pureza virginal de Maria com o apreço que Ela lhe
votou, conhecer-se-á um pouco qual foi esta virtude em seu virginal corpo e alma.
Desejou-a desde sua imaculada conceição. Dela fez voto em sua natividade, e
guardou-a de tal modo que jamais praticou ação, movimento ou gesto que a ofendes
se, nem sequer tocasse em seu pudor A não ser por vontade de Deus, jamais falou
com homem algum. Não lhes fitava o rosto nem ao das mulheres, não pelo perigo, mas
por mérito, para nosso exemplo e pela superabundância de sua divina prudência
sabedoria e amor.

A clemência e mansidão de Nossa Senhora

590. De sua clemência e mansidão disse Salomão que a lei da clemência
estava em sua língua (Pr 31, 26), pois nunca se moveu, a não ser para distribuir
a graça que em seus lábios se derramava (SI 44, 3). A mansidão governa a ira,
e a clemência modera o castigo.
Não teve nossa mansíssima Rainha ira para moderar, nem usava desta potência,
como disse no capítulo referente a fortaleza, senão para os atos de fortaleza contra o
pecado, o demônio etc.
Contra as criaturas racionais, porém, não se irou com o fim de castigá las,
nem por sucesso algum perdeu a
mansidão perfeitíssima, mantendo imutável e inimitável igualdade interior e exterior.
Jamais se lhe viu mudança no semblante,
na voz, nem movimentos que demonstrassem alguma comoção interior de ira.
O Senhor usou desta mansidão e clemência como instrumento da sua e, por
ela, difundiu todos os benefícios e efeitos das suas antigas misericórdias. Para este
fim era necessário que aclemência de Maria,Senhora nossa, fosse proporcionado
instrumento da que o Senhor tem pelas criaturas.
Considerando, atenta e profundamente, a ação da divina clemência para
com os pecadores, e sabendo-se que se dispunha e executava através de Mana
Santíssima, idôneo instrumento para ela, conhecer-se-á de algum modo a clemência
desta Senhora.
Quando repreendia, era mais rogando, admoestando e ensinando do que
punindo. Assim o pediu Ela ao Senhor, e sua providência o dispôs, para que nesta
excelsa Rainha a lei da clemência estivesse como em seu manancial e reservatório (Pr
31,26), do qual Sua Majestade se servisse, e os mortais aprendessem esta virtude
como as demais.

A humildade de Maria

591. Para dignamente falar alguma coisa, do modo como possuiu Maria
Santíssima as outras virtudes encerradas na modéstia – especialmente a humildade,
austeridade e pobreza – seriam necessários muitos livros e linguagem angélica. Do
que posso conseguir dizer, está cheia esta história, porque em todas as ações da
Rainha do céu resplandeceu, acima de qualquer virtude, sua incomparável humildade.
Temo ofender a grandeza desta singular virtude, querendo encerrar em breves termos,
o pélago que abarcou o incompreensível e incomensurável. Tudo
quanto conseguiram compreender e praticar os santos e anjos a respeito desta
virtude da humildade, não chegou ao mínimo da de nossa Rainha.
A quem dos santos e anjos o mesmo Deus chamou Mãe? E quem, fora
de Maria e do eterno Pai, pôde chamar filho ao Verbo humanado? Pois, se quem
chegou, por esta dignidade, a ser semelhante ao Pai – tendo as graças e dons
convenientes para isso – colocou-se na própria estima no último lugar das criaturas,
a todas considerando superiores: que perfume, que fragrância desprendia para Deus
este humilde nardo (Ct 1, 11) que guardava em si o supremo Rei dos reis?

A humildade nos anjos e nos homens

592. Que as colunas do céu (os anjos) se comovam e estremeçam (Jó 26,
11) em presença da inacessível luz da Majestade infinita, não é maravilha, pois
presenciaram a ruína de seus semelhantes, enquanto foram preservados, mediante os
mesmos benefícios e razões que todos tiveram.
Que os mais fortes e invencíveis santos se humilhassem, abraçando o desprezo e
abatimento, reconhecendo-se indignos do menor favor da graça, e até do
obséquio e socorro das coisas naturais, tudo era justíssimo e coerente, pelo fato de
todos havermos pecado e necessitarmos de ser justificados por Deus (Rm 3, 23).
Ninguém foi tão grande e santo, que não pudesse ser maior; nem tão perfeito,
que não lhe faltasse alguma virtude;
nem tão inocente, que o olhar de Deus nele
não encontrasse alguma coisa que repreender. Mesmo que alguém fosse em tudo
perfeitamente consumado, todos permanecem na esfera da graça e favor comuns,
sem ninguém chegar a ser em tudo superior
a todos.

A humildade incomparável de Maria

593. Nisto porém, foi sem semelhante, a humildade de Maria Puríssima.
Sendo autora da graça, princípio de todo o bem para as criaturas, a suprema entre
todas elas, prodígio das perfeições de Deus, centro de seu amor, obra de sua
onipotência, aquela que O chamou Filho e aquém Ele
chamou Mãe, humilhou-se ao mais baixo lugar de toda a criação.
Gozando da maior excelência que Deus pôde colocar em pura criatura, e não
tendo outra superior a Ela para atingir, humilhou-se, julgando-se indigna de receber
a menor estimação, excelência e honra da mais íntima criatura racional.
Não somente se considerava indigna da dignidade
de Mãe de Deus c das graças que isto encerrava, mas ainda do ar que respirava,
da terra que a sustentava, do alimento que recebia e dc qualquer obséquio e serviço
das criaturas, tudo agradecendo como se nada merecera.
Para dizer muito em poucas palavras, não desejar a criatura racional a
excelência que absolutamente não lhe compete, ou que por alguma razão desmerece,
não é tão generosa humildade, ainda que a infinita clemência do Altíssimo a aceite e se
dê por obrigado a quem assim se humilha.
O mais admirável, porém, é que se humilhe, mais que todas as criaturas juntas.
Aquela que, merecendo toda majestade e excelência, não a desejou nem procurou.
E, sendo digna Mãe de Deus, aniquilou-se em sua própria estima, merecendo com esta
humildade ser, com justiça, elevada ao domínio e senhorio da criação universal.

A modéstia de Maria

594. A esta incomparável humildade, correspondiam em Maria Santíssima
as outras virtudes compreendidas na modéstia. O apetite de saber mais do que
convém, ordinariamente nasce de pouca humildade ou caridade. Sendo vício sem
proveito, vem a ser muito prejudicial, como sucedeu a Dina (Gn 24,1) que procurando
ver, com inútil curiosidade, o que não precisava, foi vista com tanto dano para sua honra.
Da mesma raiz da presunçosa soberba, costuma originar-se a supérflua
ostentação e fausto no trajar, as desordenadas ações, gestos e movimentos corporais, que servem à vaidade e sensualidade e dão prova da leviandade do coração,
segundo o que diz o Eclesiástico (Eclo 19, 27): o traje do corpo, o riso da boca e os
movimentos do homem, revelam seu interior.
Todas as virtudes contrárias a estes vícios estavam em Maria Puríssima
intactas, sem contradição ou movimento que as pudesse perturbar ou manchar. Pelo
contrário, como filhas e companheiras de sua profundíssima humildade, caridade e
pureza, comunicavam a esta soberana Senhora certos vislumbres mais de criatura
divina do que humana.

A pobreza, austeridade e modéstia de Maria

595. Era estudiosíssima sem curiosidade. Estando repleta de mais sabedoria que
os próprios querubins, deixava-se instruir por todos, como se fosse ignorante.
Quando usava da divina ciência, para perserutar a divina vontade,
era tão prudente e movida por fins tão altos, e oportunas circunstâncias, que
seus desejos sempre feriam o coração de Deus e o atraía a satisfazer-lhe sua ordenada vontade.
Na pobreza e austeridade foi admirável. Sendo Senhora de toda a criação e podendo de tudo dispor, tudo abandonou para imitar seu Filho Santíssimo.
Assim como o Pai pôs todas as coisas nas mãos do Verbo Humanado,
(Jo 13,3) também as confiou às mãos de sua Mãe. Ela,
porém, fez o mesmo e deixou-as todas, afetiva e efetivamente, pela glória de seu Filho e Senhor.
Da modéstia de suas ações, doçura de suas palavras e de seu porte,
bastará dizer que, pela inefável grandeza que revelava nessas virtudes, poderia ser
considerada criatura mais que humana, se a fé não ensinasse que era pura criatura,
conforme confessou o sábio de Atenas, São Dionísio.

DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU.

Necessidade da temperança

596. Minha filha, segundo o que compreendeste, disseste alguma coisa
sobre a dignidade e excelência da virtude da temperança, e o modo como eu a
praticava. Muito ficaria ainda por dizer, para que os mortais entendessem a
premente necessidade de controlar seus atos pela temperança.

Castigo do primeiro pecado foi o homem perder o perfeito domínio da
razão. As paixões, desobedientes a ela, se revoltaram contra o homem rebelde a
Deus, por desprezar seu justíssimo preceito. Para reparar este dano foi
necessária a virtude da temperança; ela doma as paixões, refreia seus
movimentos de deleite, modera-as e restitui ao
homem o conhecimento do perfeito equilíbrio da concupiscência . Ensina-o
novamente a se sujeitar à razão, que tem capacidade para Divindade, e
a não seguir os próprio s deleites, como os
irracionais. Sem esta virtude, impossível
é à criatura despir-se do velho homem, e
se dispor para os dons da graça e sabedoria divina, porquanto esta não habita
na alma de um corpo sujeito a pecados (Sb 1, 4).
Aquele que, mediante a temperança, modera suas paixões, negando-lhes o desordenado e bestial deleite
que apetecem, poderá dizer, por experiência, que o rei o introduz na adega de
seu delicioso vinho (Ct 2, 4) e dos tesouros da sabedoria e espirituais carismas. Esta virtude é a comum geradora de outras muitas virtudes formosas, fragrantes e agradáveis ao Altíssimo.

Frutos espirituais da temperança

597. Apesar de ser meu desejo que te esforces por adquirir todas as virtudes,
considera, em particular, a beleza e o agradável perfume da castidade; a energia
da abstinência e sobriedade na comida e bebida; a suavidade da modéstia nas
palavras e ações; a nobreza da altíssima pobreza no uso das coisas.
Com estas virtudes obterás a luz divina, a paz e a tranqüilidade de tua alma,
a serenidade de tuas potências, o controle de tuas inclinações. Chegarás a ser toda
iluminada com os resplendores da divina graça e seus dons. Da vida sensitiva e
animal, serás elevada à vida angélica e sua conversação, vida que desejo para ti, e que
tu mesma queres alcançar com o auxílio divino.

Adverte, pois, caríssima, e desvela-te em agir sempre pela luz da graça, e
nunca se movam tuas potências somente pelo próprio deleite e gosto. Em todas as
coisas necessárias para a vida: comer, dormir, vestir, falar, ouvir, desejar, corrigir,
mandar, pedir – em tudo sejas governada pela luz e gosto de teu Senhor e Deus, e não
pelo teu, visando unicamente sua glória e beneplácito.

Vícios contrários à temperança e seus danos

598. Para mais te afeiçoares à beleza e graça desta virtude, lembra-te da
fealdade dos vícios contrários a ela. Medita, na luz que recebes, quão feio,
abominável, horrível e monstruoso encontrase o mundo aos olhos de Deus e dos
santos, pela enormidade de tantas abominações, cometidas pelos homens contra
esta amável virtude.
Observa quantos seguem, ao modo dos animais brutos, a repelente sensualidade;
outros a gula e a embriaguez, estes o luxo e a vaidade, aqueles a soberba
e a presunção, outros a avareza, o deleite de adquirir bens. De modo geral, todos se
deixam arrastar pelo ímpeto das paixões. Enquanto agora buscam apenas o deleite
vão entesourando, para o futuro, eternos tormentos na privação da vista beatífica de
seu Deus e Senhor.

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