parte 1
CAPITULO 6
DÚVIDA QUE APRESENTEI AO SENHOR SOBRE A DOUTRINA DESTES CAPÍTULOS, E A SOLUÇÃO DELA.
Finalidades da Encarnação
72. Sobre as inteligências e doutrina dos capítulos anteriores surgiu-me a seguinte dúvida, ocasionada pelo que
muitas vezes tenho ouvido de pessoas doutas e é disputado nas escolas: – se a causa e motivo principal para que o Verbo divino se humanasse foi constituí-lo cabeça e primogênito de todas as criaturas (Cl1,15s.), e por meio da união hipostática com a natureza humana, comunicar seus atributos e perfeições, no modo conveniente, por graça e glória aos predestinados.
O assumir carne passível e morrer pelo homem, foi decreto e fim secundário. Sendo assim verdade, por que na santa Igreja há tantas opiniões diferentes sobre isso, sendo a mais comum que o Verbo eterno desceu do céu principalmente para remir os homens, por meio de sua santíssima paixão e morte?
Glória de Deus e redenção do homem
73. Humildemente propus esta dúvida ao Senhor, que se dignou responder. Deu-me inteligência e luz muito vasta, na qual conheci muitos mistérios que não poderei explicar inteiramente, porquanto suas palavras significam muito mais do que o som transmite.
Disse-me: – Esposa e pomba minha, ouve: como teu Pai e mestre, quero responder a tua dúvida e instruir tua ignorância. Adverte que o principal e legítimo fim do decreto de comunicar minha divindade à pessoa do Verbo,
unida hipostaticamente à natureza humana, foi a glória que desta comunicação resultaria para meu nome, e para as criaturas capazes da que Eu lhes quis dar.
– Este decreto seria infalivelmente executado na Encarnação, ainda que o primeiro homem não tivesse pecado. Decreto expresso e incondicional na substância, por ele deveria cumprir-se minha vontade de, em primeiro lugar,
comunicar-me à alma e à humanidade do Verbo Encarnado. Assim era conveniente à minha eqüidade e à retidão de minhas obras.
– Ainda que isso foi posterior na execução, na intenção foi anterior. Se tardei enviar meu Unigênito ao mundo, foi
porque desejei preparar-lhe um grupo escolhido e santo de justos que, não obstante o pecado original comum a todos, seriam como rosas entre os espinhos dos outros pecadores.
– Em conseqüência da queda do gênero humano, é que determinei com decreto expresso, que o Verbo viesse em
forma passível e mortal para redimir o povo de quem era cabeça. Deste modo, mais se manifestaria meu amor infinito pelos homens, e seria prestada a devida satisfação à minha eqüidade e justiça. Se aquele que pecou era homem, e o primeiro no existir, o Redentor devia ser homem (Cor 15,21), e o primeiro na dignidade.
– Nisto conheceriam os homens a gravidade do pecado, e o amor de todos teria um único objeto, pois um só e o mesmo é seu Criador, Redentor e Juiz. Quis também obrigá-los a esta gratidão e amor, não punindo os mortais, como os anjos apóstatas que castiguei sem apelação. Ao homem perdoei, esperei e lhe dei oportuno
remédio, executando o rigor de minha justiça em meu unigênito Filho (Rm 8,32), e passando ao homem a piedade de minha grande misericórdia.
A Encarnação, se não existisse pecado
74. – Para melhor entenderes a resposta de tua dúvida deves advertir que, visto em meus decretos não haver sucessão de tempo, nem eu dele necessitar para entender e agir, os que dizem que o Verbo se encarnou para redimir o mundo não erram, e os que dizem que se encarnaria mesmo que o homem não pecasse, também acertam, desde que o entendam de acordo com a verdade.
– Se Adão não pecara, o Verbo desceria do céu na forma conveniente àquele estado de inocência. Como pecou, houve aquele segundo decreto, para descer passível e reparar o pecado.
– Desejas saber como se executaria o mistério da Encarnação, caso o homem conservasse seu estado de inocência? Sua forma humana na substância seria a mesma, mas com o dom da impassibilidade e imortalidade, como esteve meu Unigênito depois que ressuscitou, até subir aos céus.
Viveria e conversaria com os homens, seus mistérios seriam conhecidos por todos.
Muitas vezes lhes revelaria sua glória, como uma vez em sua vida mortal, a revelou diante de três apóstolos (Mt 17,1) apenas.
– Naquele estado de inocência, todos o veriam com grande glória, alegrar-se-iam na sua convivência, não oferecendo impedimentos às suas divinas influências, já que seriam sem pecado. Tudo isto, porém, foi impedido e frustrado pela culpa, e por causa dela o Verbo veio passível e mortal.
75. – As diversas opiniões em
minha Igreja sobre estes e outros mistérios, tiveram origem no fato de a mestres diversos Eu manifestar á luz de diferentes mistérios.
– Os mortais não são capazes de receber a luz total, e enquanto são viadores, não seria conveniente dar a um deles a ciência de todas as coisas. Mesmo quando compreensores, recebem-na parcialmente, e lhas dou em proporção ao estado e merecimentos de cada um, e como convém à minha providência distribuí-la. A plenitude da ciência só foi devida à humanidade de meu Unigênito e à sua Mãe respectivamente. Os demais mortais nunca a recebem toda, nem tão clara que possam estar seguros de tudo. Por isso adquirem-na com trabalho e estüdo. Ainda que minhas Escrituras contenham muitas verdades reveladas, deixo-os freqüentemente em sua inteligência natural, apesar de que noutras vezes lhas dou infusa.
Daqui procede que entendam os mistérios com diversidade de pareceres e encontrem diferentes explicações e sentidos nas Escrituras, e cada um adota sua opinião conforme a entende. Não obstante a intenção de muitos ser reta, e a luz da verdade em substância ser uma só, entendem e usam dela com diferentes julgamentos, inclinando-se cada qual pelos mestres de sua preferência. Assim originam-se entre eles as controvérsias.
A Encarnação ordenada à Redenção
76. – O motivo de ser mais geral a opinião que o Verbo desceu do céu principalmente para redimir o mundo, procede, entre outras causas, de ser o mistério da redenção e seus fins mais conhecidos, além de já estar realizado, e a Sagrada Escritura nele insistir muitas vezes.
– O desígnio da impassibilidade, pelo contrário, não se executou nem foi decretado absoluta e expressamente. Tudo
o que se referia a esse estado, portanto, permaneceu oculto, e ninguém pode vir a sabê-lo, se Eu não lhe der particular luz e revelação, sobre aquela nossa intenção e amor pela natureza humana.
– Ainda que isto poderia comover muito os mortais, se o meditassem e o compreendessem, o decreto e obras da
redenção de sua queda, é mais forte e eficaz para movê-los e trazê-los ao conhecimento e correspondência de meu amor, finalidade de todas minhas obras. Por esta vantagem, providencio para que estes motivos e mistérios sejam mais lembrados e tratados do que aqueles outros.
Além disto, numa obra pode haver dois fins, quando um deles é condicional. Se o homem não pecasse, não desceria o Verbo em forma passível, e se pecasse, seria passível e mortal. Deste modo, em qualquer caso não se deixaria de realizar o mistério da Encarnação.
– Quero que os mistérios da Redenção sejam conhecidos, estimados e continuamente lembrados para me agradecerem. Não obstante, quero também que os mortais reconheçam o Verbo humanado por sua cabeça e causa final de toda criação. Foi Ele, depois de minha própria benignidade, o principal motivo que tive para dar existência às criaturas. Deve ser reverenciado, não somente porque redimiu a estirpe humana, mas também porque foi a causa de sua criação.
Utilidade das controvérsias
77. – Adverte, esposa minha, que Eu permito muitas vezes terem os doutores e mestres diferentes opiniões. Uns dizem o verdadeiro e outros o duvidoso, seguindo cada qual seu natural engenho. Noutras ocasiões, permito digam o que não é, ainda que em princípio não seja contrário à verdade obscura da fé, na qual todos os fiéis estão firmes. Em outras dizem o que julgam possível, segundo entendem.
– Com esta diversidade, a luz e a verdade vão sendo investigadas e os mistérios esclarecidos, porque a dúvida serve de estímulo ao entendimento, para inquirir a verdade. Esla é a honesta e santa causa das controvérsias dos mestres.
– Tantas diligências e estudos de grandes e perfeitos doutores e sábios, demonstram também, que em minha
Igreja há ciência que forma sábios eminentes, superiores aos do mundo, e que acima de todos há um emendador de sábios (Sb 7, 15), Eu, que unicamente tudo sei, compreendo, peso e meço (Sb 9, 13), sem poder ser medido nem compreendido. Por mais que esquadrinhem meus juízos e testemunhos, não poderão os homens compreendê-los, se Eu, que sou o princípio e autor de toda a sabedoria e ciência, não lhes der inteligência e luz (Jó 32, 8). Sabendo isso, quero que os mortais me louvem, enalteçam e glorifiquem eternamente.
Ás heresias
– Quero também que os santos doutores com seu honesto, santo e louvável trabalho adquiram para si muita
graça, luz e glória, para a verdade ir sendo descoberta, esclarecida e cada vez mais se aproxime de sua fonte. Investiguem com humildade os mistérios e obras de minha destra, delas participem e gozem do pão do entendimento (Eclo 15, 3) de minhas Escrituras.
Usei de grande providência com os doutores e mestres, ainda que suas opiniões e dúvidas tenham sido tão diversas e por diferentes motivos: umas vezes são para minha honra e glória, e outras apenas para impugnar-se e contradizer-se por razões terrenas. Com esta porfia e paixão procedem desigualmente.
Apesar disso, tenho-os governado, dirigido e iluminado, assistindo-os com minha proteção, de maneira que a
verdade tem sido muito investigada e esclarecida. A luz para conhecer muitas de minhas perfeições e obras maravilhosas foi bastante aumentada, sendo as santas Escrituras tão altamente interpretadas, que isto muito me tem agradado e satisfeito.
– O inferno, ao contrário, por esta mesma causa, enfureceu-se com incrível inveja, e ainda mais nos tempos atuais. Ergueu seu trono de iniqüidade, combatendo a verdade e pretendendo tragar o Jordão (Jó 40, 18). Valendo-se
dos homens (Mt 13, 25), por meio de heresias e falsas doutrinas, derramou sua cizânia para obscurecer a luz da santa fé.
O resto da Igreja, porém, e suas verdades encontram-se em grau perfeitíssimo. É assim que para os fiéis católicos, mesmo quando seduzidos e cegos por outras misérias, se mantêm à luz da verdadeira fé. Mas, são poucos ainda (Mt 22, 14) os que se dispõem a atender-me com total submissão e fervor.
79. – Quero também, minha esposa, que entendas: minha providência dispõe que haja entre os mestres muitas
opiniões, a fim de mais se investigarem meus testemunhos. Assim é manifestada aos homens viadores a medula das divinas letras, mediante suas honestas diligências, estudos e trabalhos.
Não obstante, seria de muito agrado e serviço para Mim, que as pessoas doutas evitassem a soberba, inveja, ambição de vangloria, e outras paixões e vícios daí gerados, além de toda a má semente (Idem 13, 29) que resulta de tais trabalhos, quando desempenhados com viciosas intenções. Entretanto, não a arranco logo, para não se extirpar a boa com a má semente.
Tudo isso me respondeu o Altíssimo e outras muitas coisas, que não posso manifestar. Seja eternamente bendita sua grandeza, que houve por bem instruir minha ignorância e satisfazê-la tão adequada e misericordiosamente, sem dedignar-se com a pequenez desta mulher insipiente e de todo inútil. Dêem-lhe graças e louvores sem fim, todos os espíritos bem-aventurados do céu e justos da terra.
Dê seu testemunho sobre seu encontro com a Divina Vontade