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5. Nascimento de Maria. A sua virgindade no eterno pensamento do Pai.
26 de agosto de 1944
Vejo Ana sair no pomar. Apóia-se ao braço provavelmente de uma parente, porque se
assemelha a ela. Está muito volumosa e parece afadigada talvez pelo afã, parecido com o que eu
sinto agora.
Embora o pomar esteja na sombra, o ar ali está quente, pesado. Um ar que se poderia cortar como
uma massa mole e quente, de tão denso, sob um impiedoso céu de um azul embaçado pela poeira
suspensa nos espaços. Faz tempo que deve ter havido estiagem, porque a terra, onde não é irrigada,
está literalmente reduzida a uma poeira finíssima, quase branca. De um branco levemente tendente a
um rosa-escuro, mais para o marrom ao pé das plantas ou ao longo dos breves canteiros, onde
banhadas crescem fileiras de hortaliças, em torno aos roseirais, aos jasmineiros, outras flores, que
estão ao lado de uma parreira bonita cortando pela metade o jardim, até ao início dos campos,
despojados de gramináceas. Também a relva do prado, assinalando o fim da propriedade, está
chamuscada e rala. Só ás margens dela, onde há uma cerca de espinheiro-alvar selvagem, marcado
pelos rubis dos pequenos frutos, a grama é mais verde e espessa. Ali estão as ovelhinhas com um
pequeno pastor, à procura de pasto e de sombra.
Joaquim está ao redor das fileiras e das oliveiras. Com ele há dois homens que o ajudam. Mesmo
ancião, Joaquim é ágil e trabalha com gosto. Estão abrindo pequenos cercados nos limites de um
campo, para dar água às plantas sequiosas. A água abre um caminho borbulhando entre a relva e a
terra abrasada, e se estende em anéis, que por um momento parecem de um cristal amarelado e
depois são só anéis escuros de terra úmida, em torno aos sarmentos e as oliveiras sobrecarregadas.
Ana lentamente vai na direção de Joaquim que quando a vê se apressa a encontrá-la andando pela
parreira sombreada, sob a qual abelhas de ouro zumbem ávidas do açúcar dos grãos de uva branca.
– Chegastes até aqui?
– A casa está quente como um forno.
– E tu sofres.
– O único sofrimento é desta minha última hora de grávida. O sofrimento de todos, homens e
animais. Não te acalores demais, Joaquim.
– A água, que esperamos faz tempo e que de três dias para cá parecia bem próxima, ainda não veio,
e o campo queima. É bom para nós que temos a nascente próxima e é muito rica de águas. Abri os
canais. Um pouco de refrigério para as plantas, que têm as folhas murchas e cobertas de poeira. Mas
é suficiente só para mantê-las vivas. Se chovesse!… – Joaquim, com a ânsia de todos os agricultores,
perscruta o céu, enquanto Ana, cansada, se abana com um leque que parece feito com uma folha
seca de palma, entrelaçada com fios multicolores que a tornara rígida.
A parente diz:
– Lá, além do grande Hermon, surgem nuvens velozes. Vento do norte. Refrescará e talvez trará
água.
– Sâo três dias que se levanta e depois cai com o surgir da lua. Será ainda assim. – Joaquim está
desanimado.
– Voltemos para casa. Aqui também não se respira, e depois penso que seja bom voltarmos… – diz
Ana, que parece ainda mais olivácea por causa de uma palidez que lhe veio sobre o rosto.
– Sofres?
– Não. Mas sinto aquela grande paz que senti no Templo quando me foi dada a graça e que senti
ainda quando soube que seria mãe. É como um êxtase. Um doce sono do corpo, enquanto o espírito
ju bila e se aplaca em uma paz sem comparação humana. Eu te amei, Joaquim, e quando entrei na
tua casa e disse a mim mesma: “Sou esposa de um justo”, tive paz, e assim todas as vezes que o teu
amor providencial cuidou da tua Ana. Mas esta paz é diferente. Veja, eu creio que é uma paz como
aquela que devia invadir, como óleo que se expande e suaviza o espírito de Jacó, nosso pai, depois
do seu sonho * de anjos; e, melhor ainda, semelhante à paz jubilosa dos Tobias depois que Rafael se
manifestou a eles. Se me abandono a apreciá-la, ela sempre cresce mais. É como se eu subisse pelos
espaços azuis do céu… e, não sei por que, desde que eu tenho em mim esta alegria pacífica, eu tenho
um cântico no coração, aquele do velho Tobias. Parece-me que tenha sido escrito para esta hora…
para esta alegria… para a terra de Israel que a recebe… para a Jerusalém pecadora e agora
perdoada… mas, não rides dos delírios de uma mãe, quando digo: “Agradece o Senhor pelos teus
bens e glorifica o Deus dos séculos, a fim de que reedifiques em ti o seu Tabernáculo”, eu penso
que aquele que reedificará em Jerusalém o Tabernáculo do Deus verdadeiro será este que está para nascer; penso ainda que não mais do que a Cidade santa, mas pela minha criança seja profetizado o destino quando o cântico diz: “Tu brilharás com uma luz
esplêndida, todos os povos da terra se prostrarão a ti, as nações virão a ti trazendo presentes, em ti
adorarão o Senhor e julgarão santa a tua terra, porque dentro de ti invocarão o Grande Nome. Tu
serás feliz nos teus filhos, porque todos serão abençoados e se reunirão ao lado do Senhor. Bem-
aventurados aqueles que te amam e regozijam tua paz!…”; e a primeira a regozijar sou eu, a sua mãe bem-aventurada…”.
Ana empalidece e se inflama como algo trazido pela luz lunar a um grande fogo e vice-versa, ao
dizer estas palavras. Doces lágrimas descem sobre suas faces e ela nem as percebe, sorrindo de
alegria. E assim vai em direção à casa, entre o esposo e a parente, que a escutam e calam-se
comovidos.
Apressam-se porque as nuvens, impelidas por um vento forte galopam e 5.3 crescem pelo céu, e a
planície torna-se escura e estremece por um aviso de temporal. Quando alcançam à soleira da casa,
um primeiro relâmpago lívido sulca o céu e o barulho do primeiro trovão parece o rufar de um
enorme tambor que se mistura ao harpejo dos primeiros pingos sobre as folhas secas.
Entram todos e Ana se retira, enquanto Joaquim, alcançado pelos criados, fala, da porta, desta longa
espera pela água, que é uma bênção para a terra sedenta. Mas a alegria se transforma em temor,
porque vem um temporal violentíssimo com raios e nuvens carregadas de granizo.
– Se a nuvem rompe, a uva e as oliveiras serão esmagadas como pela moenda. Pobres de nós!
Joaquim tem uma outra ansiedade: pela esposa para a qual chegou a hora de dar à luz o seu filho. A
parente o tranqüiliza que Ana não sofre absolutamente nada. Mas ele está ansioso; cada vez que
a parente ou outras mulheres, entre as quais a mãe de Alfeu, saem do quarto de Ana para depois
voltarem com água quente e bacias e linhos enxutos junto ao fogo da lareira central numa cozinha
ampla, Joaquim pergunta algo, não se acalmando com as respostas. Também a ausência de gritos
de Ana o preocupa. Diz:
– Eu sou homem e nunca vi um parto. Mas lembro-me de ter ouvido dizer que a ausência de dores é
fatal…
Vem a noite, antecipada pela fúria tempestuosa que é violentíssima. Agua torrencial, vento, raios,
ali tem de tudo, menos o granizo, que foi cair em outra parte.
Um dos criados percebe a violência e diz:
– Parece que satanás saiu do inferno com seus demônios. Olha que nuvens negras! Sente que cheiro
de enxôfre no ar, assobios, sibilos, vozes de lamento e maldição. Se é ele, está furioso esta noite!
O outro criado ri e diz:
– Fugiu-lhe uma grande presa, ou Miguel o espancou com uma nova faísca de Deus, e ele ficou com
o chifre e o rabo cortado e queimado”.
Passa correndo uma mulher e grita:
– Joaquim! Está para nascer! E foi tudo rápido e feliz! – e desaparece com uma pequena ânfora entre
as mãos.
O temporal pára de improviso depois de um último raio tão violento que arremessa contra as
paredes os três homens; e na frente da casa, no chão do horto-jardim, fica como lembrança um
buraco preto e fumegante. Ao mesmo tempo um gemido vem de lá da porta de Ana, gemido que
parece o lamento de uma rolinha que pela primeira vez não pia, mas arrulha. Um enorme arco-íris
estende a sua listra em semicírculo sobre toda a amplidão do céu. Surge, ou pelo menos parece
surgir, do cume do Hermon que beijado por uma lama de sol, parece de alabastro de um branco-
rosado delicadíssimo. Este arco- íris levanta-se até o mais claro céu de setembro, e, atravessando
por espaços limpos de toda impureza, sobrevoa as colinas da Galiléia e a planície que aparece, entre
duas árvores de figo, ao sul e depois ainda um outro monte, indo pousar a sua ponta final no
extremo horizonte, lá onde uma áspera cadeia de montanhas fecha qualquer outro panorama.
– Nunca vi isso!
– Olhai, olhai!
– Parece que toda a terra de Israel esteja ligada em um círculo, mas olhai, ali já há uma estrela,
enquanto que o sol ainda não desapareceu. Que estrela! Brilha como um enorme diamante!…
– A lua é toda plena, enquanto que ainda faltam três dias para a lua cheia. Mas olhai como
resplandece!
As mulheres chegam repentinamente, alegres com um embrulhozinho rosado entre tecidos
alvos.
É Maria, a mãe! Uma Maria pequenina que poderia dormir entre o círculo de braços de um menino,
uma Maria comprida tanto quanto um braço, uma cabecinha de marfim tingido de um rosa tênue,
com a boquinha de carmim, que já não chora mais, mas faz o instintivo ato de sugar, tão pequena
que não se sabe como fará para pegar
um mamilo, um narizinho diminuto entre duas pequenas faces arredondadas e ao tocá-lo abrem-se
os olhinhos, dois pedacinhos do céu, dois pontinhos inocentes e azuis que olham, mas não vêem,
entre cílios delicados, de um loiro tão intenso que é quase róseo. Também os cabelinhos sobre a
cabecinha arredondada são a cor loiro-rosado de algumas qualidades de mel quase branco.
No lugar de orelhas, duas conchinhas rosadas e transparentes, perfeitas. E por mãozinhas… o que
são aquelas duas coisinhas que agitam-se no ar e depois vão à boca? Fechadas como agora, dois
botões de rosa musgo que separam o verde das sépalas e lhes estende a seda de um tênue rosa;
abertas como agora, duas pequenas jóias de marfim de alabastro ligeiramente rosado, com cinco
romãs pálidas no lugar das unhazinhas. Como farão aquelas mãozinhas para enxugar tanto choro?
E os pezinhos? Onde estão? Por enquanto são só um espernear escondido entre os linhos. Mas eis
que a parente senta-se e a descobre…
Oh! Os pezinhos! Compridos uns quatro centímetros, têm por
planta, uma concha coralina, como dorso uma concha de um branco neve com veiazinhas azuis, têm
por dedinhos as obras-primas de escultura liliputiana, são também coroados por pequenos
fragmentos de pálida romã. Mas como se encontrarão sandalinhas tão pequenas para poder estar
naqueles pezinhos, quando tais pezinhos de boneca derem os primeiros passos? E como estes
mesmos pezinhos farão tão áspero caminho e sustentarão tanta dor, debaixo de uma cruz?
Mas agora isto não se sabe, e se ri e sorri do seu debater-se e espernear, das perninhas bonitas
torneadas, das coxas pequenas que fazem covinhas e dobrinhas de tanto que são gorduchas, da
barriguinha, uma taça emborcada do pequeno tórax perfeito sob cuja seda cândida se vê o
movimento da respiração que certamente se ouve. O pai feliz escuta seu peitinho agora, e o beija ao
ouvir bater um coraçãozinho… Um coraçãozinho que é o mais bonito que a terra teve nos séculos
dos séculos, o único coração humano imaculado.
E as costas? Eis que a viram, e se vê a forma dos rins e depois os ombros gorduchos e a nuca rosada
tão forte que a cabecinha se ergue sobre o arco das pequenas vértebras, parecendo a cabecinha de
um pássaro que perscruta ao redor o mundo novo e tem um gritinho de protesto por ser assim
mostrada, ela, a pura e casta, aos olhos de tantos, ela que homem nenhum a verá nua, a toda virgem,
a santa e imaculada. Cobri, cobri este botão de flor-de-lis que nunca se abrirá sobre a terra e que
dará, ainda mais bonita que ela, a sua flor, sempre permanecendo botão.
Só nos Céus o Lírio do Trino Senhor abri rá todas as suas pétalas.
Porque no céu não há poeira de culpa que possa involuntariamente profanar aquele candor. Porque lá em
cima deve ser acolhido, à vista de todo o Empíreo, o Deus Trinitário que agora ocultado em um
coração sem mácula, entre poucos anos estará nela: Pai, Filho, Esposo.
Eis ali de novo entre os linhos e entre os braços do pai terreno, com quem ela se assemelha. Não
agora. Agora é um esboço de homem. Eu digo que se lhe assemelhará quando mulher. Da mãe não
tem nada. Do pai, a cor da pele, dos olhos e certamente dos cabelos que, se agora são brancos, na
juventude eram certamente loiros como o dizem as sobrancelhas. Do pai, as feições, feitas mais
perfeitas e gentis por ser ela mulher, a mulher. Do pai o sorriso, o olhar, o modo de mexer-se e a
estatura. Pensando em Jesus, como o vejo, acho que Ana deu a sua estatura ao Neto e a cor marfim
mais carregada da pele. Enquanto que Maria não tem aquela imponência de Ana, um palmo mais
alta e flexível, mas tem a gentileza do pai.
6As mulheres também falam do temporal e do prodígio da lua, da estrela, 5.6 do imenso arco-íris,
enquanto junto ao Joaquim entram onde está a mãe feliz e lhe entregam a criancinha.
Ana sorri a um pensamento:
– É a Estrela – diz.
– O seu sinal está no céu. Maria, arco de paz! Maria, minha estrela! Maria, lua pura! Maria, nossa
pérola!
– Chama-se Maria?
– Sim. Maria, estrela, pérola, luz e paz…
– Mas também quer dizer amargura… Não temes trazer-lhe desventura?
– Deus está com ela. Já era Dele antes de ser. Ele a conduzirá pelos seus caminhos e toda amargura
se transformará em um paradisíaco mel. Agora sejas da tua mãe… ainda por um pouco, antes de
seres toda de Deus…
E a visão termina sobre o primeiro sono de Ana mãe e de Maria criança.
27 de agosto de 1944.
Jesus diz:
“Surge e apressa-te pequena amiga. Tenho um desejo ardente de te levar Comigo para o azul
paradisíaco da contemplação da Virgindade de Maria. Sairás com a alma jovem como se tu
também fosses criada há pouco pelo Pai, uma pequena Eva que ainda não conhece a carne. Sairás com o espírito
repleto de luz, porque tu mergulharás, na contemplação da obra-prima de Deus. Sairás com todo o
teu ser saturado de amor, porque compreenderás como Deus sabe amar. Falar da concepção de
Maria, a sem mácula, quer dizer mergulhar-se no azul, na luz, no amor.
Vem e lê as suas glórias no Livro do Avo: “Deus me possuiu no início
de suas obras, desde o princípio, antes da criação. “Ab aeterno” fui predeterminada no princípio.
Antes que fosse feita a terra, ainda não existiam os abismos e eu já era concebida. Nem as nascentes
das águas transbordavam, nem os montes tinham-se erguido em suas grandes dimensões, nem as
colinas eram cadeias montanhosas ao sol, e eu já tinha sido gerada. Deus ainda não tinha feito a
terra, os rios, e as bases do mundo, e eu era. Quando preparava os céus eu estava presente, quando
com lei imutável fechou sob a orla celeste o abismo, quando tornou estável no alto a abóbada
celeste e suspendeu as fontes das águas, quando fixava ao mar os seus confins e dava leis às águas
de não passar os seus limites, quando assentava os fundamentos da terra, eu estava com Ele a dispor
todas as coisas. Sempre na alegria brincava diante Dele continuamente, brincava no universo…”.
Aplicaram estas palavras à Sabedoria, mas na realidade elas falam dela: a bela mãe, a santa mãe, a
virgem mãe da Sabedoria, que sou Eu que te falo.
Eu quis que tu escrevesses o primeiro verso deste hino no início do livro que fala dela, para
que fosse confessada e percebida a consolação e a alegria de Deus; a razão do constante, perfeito,
íntimo regozijo deste Deus uno e trino, que vos guia e ama, que do homem teve tantas razões de
tristeza; a razão pela qual Deus perpetuou a raça, mesmo quando, à primeira prova, merecia ser *
destruída; a razão do perdão que vocês tiveram.
Ter Maria que o amasse. Oh! bem merecia criar o homem, e deixá-lo viver, e decretar perdoá-lo,
para ter a virgem bela, a virgem santa, a virgem imaculada, a virgem enamorada, a filha dileta,
a mãe puríssima, a esposa amorosa!
Muito e mais ainda vos deu e vos daria Deus para poder possuir a
criatura das suas delícias, o sol do seu sol, a flor do seu jardim. E muito continua a dar-vos por ela,
a pedido dela, pela alegria dela, porque a sua alegria se derrama na alegria de Deus e a aumenta de
esplendor que enche de faíscas a luz, a grande luz do Paraíso; cada centelha é uma graça para o
universo, para a raça do homem, para os próprios bem-aventurados, que respondem-lhes com um
grito radiante de aleluia a cada geração de milagre divino, criado pelo desejo do Deus Trino de ver
o cintilante riso de alegria da Virgem.
Deus quer um rei no universo que Ele havia criado do nada. Um rei que, pela natureza da
matéria, fosse o primeiro entre todas as criaturas criadas e dotadas de matéria. Um rei que, pela
natureza do espírito, fosse quase divino, fundido na Graça como no seu inocente primeiro dia. Mas
a Mente suprema, onde são notórios todos os acontecimentos mais distantes em séculos, cuja vista
vê incessantemente tudo quanto era, é, e será, enquanto contempla o passado e observa o presente,
eis que aprofunda o olhar no último futuro sem ignorar a morte do último homem, sem confusão
nem descontinuidade, esta Mente nunca ignorou o rei criado por Ele, para estar ao seu lado,
semidivino, no Céu, herdeiro do Pai. Ao entrar adulto no seu reino, depois de ter vivido na casa da
mãe, a terra com a qual foi feito, durante a sua infância de Eterno, na sua jornada sobre a terra, este
rei teria cometido contra si mesmo o delito de matar-se na Graça e o latrocínio de furtar-se do Céu.
Por que então o criara? Certamente muitos se perguntam isto. Teríeis preferido não existir? Este dia
não merecia ser vivido, por si mesmo, tão pobre, nu e amargo pela vossa maldade, mas para
conhecer e admirar a Beleza infinita que a mão de Deus semeou no universo?
Para quem teria feito estes astros e planetas que deslizam como setas e flechas, riscando o arco do
firmamento? Ou os aparentemente lentos, majestosos na sua corrida como bólidos, presenteando-
vos com luzes e estações como se fossem eternos, imutáveis, ainda que em contínua mudança,
oferecendo-vos uma página nova para ser lida sobre o azul, toda noite, todo mês, todo ano, quase
como dizendo-vos:
“Esquecei-vos do cárcere, deixai as vossas gravuras repletas de coisas obscuras,
podres, sujas venenosas, enganosas, blasfemadoras, corruptoras e elevai, ao menos com o olhar na
ilimitada liberdade dos firmamentos. Tende uma alma azul olhando tão grande serenidade,
criai-vos uma reserva de luz, para levar à vossa prisão escura. Lede a palavra que nós
escrevemos cantando o nosso coro sideral mais harmonioso do que acompanhado por um órgão de
catedral. A palavra que nós escrevemos brilhando, a palavra que nós escrevemos amando, visto que
sempre temos presente Aquele que nos quis dar a alegria de existir, e o amamos por nos ter dado
este ser, este esplendor, este deslizar, este sermos livres e belos em meio ao azul suave, além do
qual vemos um azul ainda mais sublime, o Paraíso. E do qual cumprimos a segunda parte do
preceito de amor amando a vós, o nosso próximo universal, amando-vos doando guia, luz, calor e
beleza. Lede a palavra que nós dizemos, e é aquela sobre a qual regulamos o nosso canto, o nosso
resplandecer, o nosso riso: Deus”?
Para quem teria feito aquele líquido azul, que é um espelho para o céu, um caminho para a terra,
sorriso das águas, voz das ondas, palavra também essa que como os sussurros de seda farfalhando,
com risadinhas de crianças serenas, com suspiros de velhos que lembram e choram, com bofetões
violentos e com chifradas, mugidos e estrondos, sempre fala e diz: “Deus”? O mar é para vós, como
o céu e os astros. E com o mar, os lagos, os rios, os pântanos, os riachos e as nascentes puras, que
servem a todos para vos transportar, nutrir, dessedentar e purificar, e que vos servem, servindo o
Criador, sem saírem para fora dos seus limites, afogando-vos, como mereceis.
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias dos animais, como flores que voam cantando, os
servos que correm, que trabalham, nutrem e são recreação para vós, os reis?
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias das plantas, e das flores que parecem borboletas,
que parecem jóias e passarinhos imóveis, dos frutos que parecem os cofres de pedras preciosas,
como tapetes para vossos pés, proteção para as vossas cabeças, recreação útil, alegria para a vossa
mente, membros, vista e olfato?
Para quem teria feito os minerais nas entranhas da terra, os sais dissolvidos nas fontes de águas
geladas ou ferventes, as fontes sulfurosas, as iodadas, as alcalinas? Não teria sido para
que alguém gozasse de tudo, alguém que não era Deus, mas filho de Deus? O homem.
Para a alegria de Deus, para as necessidades de Deus, nada era preciso. Deus se basta a Si mesmo.
Não tem que se contemplar para alegrar-se, nutrir-se, viver e repousar. Tudo o que foi criado não
aumentou um átomo a sua infinita alegria, sua beleza, seu poder. Mas tudo Ele fez pela sua criatura,
que Ele quis colocar como rei na Sua obra: o homem.
Para ver tão grandes obras de Deus e por reconhecimento para com o seu poder, vale a pena viver.
Como viventes deveis ser gratos. Deveríeis ter sido gratos, mesmo se não tivésseis sido redimidos,
hoje ou no fim dos séculos, porque não obstante tenhais sido os Primeiros, singularmente, sois até
hoje prevaricadores, soberbos, luxuriosos, homicidas. Mas Deus ainda vos concede sabor de gozar
das belezas do universo e da bondade do universo, e vos trata como se fosseis bons, filhos bons aos
quais tudo é ensinado e concedido, a fim de tornar-lhes mais doce e sadia a vida. Quanto sabeis, vós
o sabeis pela luz que Deus vos deu. Tudo quanto descobris, vós o descobris porque Deus vô-lo
indica no Bem. Porque os outros conhecimentos e descobertas, que têm o sinal do mal, vêm do Mal
supremo, satanás.
A Mente suprema, que nada ignora, antes ainda que o homem existisse, sabia que o homem,
por si mesmo, teria sido um ladrão e um homicida. E, já que a Bondade eterna não tem limites,
antes que acontecesse a Culpa, pensou no meio para anulá-la. E o meio seria: Eu. E o instrumento
para fazer do meio um instrumento operante seria: Maria. Assim é que a virgem foi criada no
Pensamento sublime de Deus.
Todas as coisas foram criadas para Mim, Filho dileto do Pai. Eu, como Rei, deveria ter tido
sob os meus pés de Rei divino tapetes e jóias como nenhum palácio real jamais teve. Cantos, vozes,
servos e ministros tão numerosos ao redor de minha pessoa que nenhum soberano jamais teve.
Flores, pedras preciosas, todo o sublime, o grandioso, o gentil, o minucioso, tudo o que é possível
buscar no Pensa mento de um Deus.
Mas Eu devia ser Carne, além de ser Espírito. Carne, para salvar a carne. Carne para sublimar a
carne, levando-a para o Céu, muitos séculos antes da hora. Porque a carne, habitada pelo espírito, é
a obra-prima de Deus, e por ela, o Céu fora feito. Para ser Carne, eu tinha necessidade de uma mãe.
Para ser Deus, eu tinha necessidade de que meu Pai fosse Deus.
Eis que, então, Deus criou para Si uma esposa, e lhe disse: “Vem comigo. A meu lado, vê tudo
quanto Eu faço pelo nosso Filho. Olha e jubila-te, virgem eterna, menina eterna, que o teu riso
encha todo este empíreo, e dê aos anjos a nota inicial, e ensina ao Paraíso uma harmonia celeste. Eu
olho para ti. E te vejo como serás, ó mulher imaculada que, por enquanto, és apenas espírito, o
espírito em que me deleito. Olho para ti, e dou o azul do teu olhar ao mar e ao firmamento, a cor dos teus cabelos
ao trigo, a tua candura ao lírio, o tom róseo à rosa, semelhante à tua pele de seda. Imito nas
pérolas os teus dentes graciosos; olhando tua boca, faço os doces morangos, ponho na voz
rouxinóis às tuas notas, e na das rolinhas o teu pranto. Ainda lendo os teus futuros pensamentos,
ouvindo as palpitações do teu coração, eu encontrei os modelos de arte para criar. Vem, minha
Alegria! Habita os mundos para divertimento teu, enquanto fores a luz que se move em meu
Pensamento, teus hão de ser os mundos pelo teu sorriso, tuas as belas formações das estrelas e o
colar dos astros todos. Coloca a lua sob os teus pés gentis, cinge-te com o cinto de estrelas da Via
Láctea. As estrelas e os planetas são para ti. Vem e diverte-te, vendo as flores que serão o
divertimento do teu Menino, servindo de almofada para o Filho do teu ventre. Vem, e vê como se
criam as ovelhas e os cordeiros, as águias e as pombas. Fica perto de mim, enquanto eu faço como
uns vasos, os mares e os rios, enquanto ergo as montanhas e as enfeito com a neve e as florestas,
enquanto semeio as searas, as árvores, as, videiras, enquanto faço para ti a oliveira, minha rainha
de paz, para ti a videira, meu sarmento que levará o Cacho eucarístico. Corre, voa, jubila-te, ó
minha beleza, e que o mundo todo, que vai sendo criado de hora em hora, aprenda contigo a me
amar, ó amorosa, e se torne mais bonito com o teu sorriso, ó mãe do meu Filho, rainha do meu
Paraíso, amor do teu Deus”. Vendo o Erro, e olhando para a Sem Erro diz ainda: “Vem a Mim, tu
que anulas a amargura da desobediência, da ingratidão, da fornicação humana com satanás. Eu
terei contigo a desforra sobre satanás”.
Deus, Pai Criador, criara o homem e a mulher com uma lei de amor tão perfeita, que não
podeis, nem ao menos compreender. E vós vos enganais ao pensar como teria aparecido a raça
humana, se o homem não o tivesse alcançado pelo ensinamento de satanás.
Olhai as plantas que produzem fruto e semente. Por acaso elas conseguem ter semente e fruto por
meio de uma fornicação ou de uma fecundação em cada cem encontros conjugais? Não. Da flor
masculina sai o pólen, guiado por um complexo de leis meteóricas e magnéticas, vai ao ovário da
flor feminina. Esta se abre, o recebe e produz. Não se suja e o rejeita depois, como vós fazeis, para
poderdes gozar, no dia seguinte, da mesma sensação. Depois de produzir não floresce, até a
próxima estação e, quando floresce, é para reproduzir.
Olhai os animais. Todos. Já vistes algum animal, macho ou fêmea, ir um ao outro para algum
abraço estéril, ou só para algum encontro lascivo? Não. De perto ou de longe, voando,
rastejando, pulando ou correndo, eles vão, quando chega a hora, ao rito fecundativo,
e não se subtraem a isso para ficarem só no prazer, mas vão
além, vão até ás conseqüencias sérias e santas, que conduzem à geração da prole, o único escopo
que, no homem, semideus pela origem da Graça que Eu restituí inteira, deveria fazê-lo aceitar a
animalidade do ato necessário, uma vez que descestes um grau no nível do animal.
Vós não fazeis como as plantas e os animais. Vós tivestes por mestre satanás, pois o escolhestes e o
desejais. As obras que praticais são dignas do mestre que quisestes ter. Mas, se tivésseis sido fiéis a
Deus, teríeis tido santamente, sem dor, a alegria de filhos, sem vos esgotardes em cópulas obscenas,
indignas, que os próprios animais não conhecem, os animais que não têm alma racional e espiritual.
Ao homem e à mulher, depravados por satanás, Deus quis opor o Homem nascido de mulher tão
purificada por Deus, a ponto de poder gerá-Lo sem relação com homem. Flor que gera flor, sem
necessidade de semente, mas apenas com o beijo do Sol sobre o cálice inviolado do Lirio que é
Maria.
A desforra de Deus!
Solta os teus silvos de inveja, ó satanás, enquanto ela está nascendo. Esta menina te venceu! Antes
que tu fosses o Rebelde, o Tortuoso, o Corruptor, já estavas vencido, e ela é a tua vencedora. Mil
exércitos alinhados nada podem contra o teu poder, e contra as tuas couraças caem as armas das
mãos dos homens, ó perene, e não há vento que possa dispersar o mau cheiro do teu hálito. No
entanto, este calcanharzinho de criança, tão rosado, que parece o interior de uma camélia também
rosada, tão liso e tão macio que a seda é áspera comparado a ele, tão pequenino, que poderia caber
no cálice de uma tulipa e usá-la como sapatinho, eis que ele te pisa sem medo, e te confina em teu
antro. Eis que só o seu vagido já te põe em fuga, a ti que não tens medo dos exércitos. O hálito
dela purifica o mundo do teu fedor. Estás derrotado. Só o nome dela, só o seu olhar, só a sua
pureza já são uma lança, um fulgor de raio, uma enorme pedra que te transpassam, que te abatem,
que te aprisionam no teu covil do inferno, ó Maldito, que tiraste a Deus a alegria de ser Pai de
todos os homens criados.
Foi inútil, pois, teres corrompido os que haviam sido criados inocentes, levando-os a conhecer e a
conceber sinuosidades da luxúria, privando Deus, de ser o doador dos filhos, em suas diletas criaturas,
dando-lhes regras que, se respeitadas, teriam mantido sobre a terra um equilíbrio entre os sexos e as raças,
capaz de evitar guerras entre os povos e desventuras entre famílias.
Obedecendo, teriam conhecido o amor. Só obedecendo, teriam conhecido e conservado o amor.
Uma posse plena e tranqüila desta emanação de Deus, que do sobrenatural desce ao inferior, para
que também a carne se alegre santamente, esta que está ligada ao espírito, criada por Aquele que
criou o espírito.
Agora, o vosso amor, ó homens, os vossos amores o que são? Ou libidinagem vestida de amor, ou
medo insanável de perder o amor do cônjuge, seja pela libidinagem própria, ou alheia. Já não estais
mais seguros quanto à posse do coração do esposo ou da esposa, desde quando a libidinagem entrou
neste mundo. Tremeis, chorais e tornais-vos loucos de ciúmes, até assassinos, às vezes, para vingar
al guma traição, desesperados, ou então abúlicos e até dementes.
Eis o que fizeste, satanás, aos filhos de Deus. Estes, que corrompeste, teriam conhecido a alegria de
ter filhos sem sentirem dor, a alegria de nascer sem o medo de morrer. Mas agora estás vencido em
uma mulher e por uma mulher. De agora em diante, quem a amar, tornará a ser de Deus, superando
as tuas tentações, para poder imitar a sua pureza imaculada. De agora em diante, não mais podendo
conceber sem dor, as mães a terão para o seu conforto. De agora em diante, as esposas a terão por
guia e os moribundos por mãe, sendo doce para eles morrer sobre aquele seio, que é um escudo
contra ti, oh Maldito, e proteção, diante do julgamento de Deus.
Maria, minha cara interlocutora, viste o nascimento do Filho da virgem e o nascimento da virgem
no Céu. Viste, pois, que para os sem culpa é desconhecido o castigo de dar a vida e também o
sofrimento de dar-se à morte. Mas, se à inocentíssima mãe de Deus foi reservada a perfeição dos
dons celestes, a todos, que tivessem permanecido inocentes e filhos de Deus, teria sido possível
gerar sem dor e morrer sem afã, por justiça de terem sabido unir-se e conceber sem luxúria.
A sublime desforra de Deus sobre a vingança de satanás foi a de elevar a perfeição da criatura dileta
a uma super-perfeição, capaz de anular, ao menos nela, toda lembrança de humanidade, que fosse
suscetível ao veneno de satanás, e para a qual, não de um casto abraço de homem, mas de um divino
amplexo, que empalidece o espírito num êxtase de Fogo, lhe teria vindo o Filho.
A virgindade da Virgem!…
Vem. Medita nesta virgindade profunda, que produz em quem a contempla vertigens de abismo! O
que é a pobre virgindade forçada da mulher que por nenhum homem foi desposada? É menos do
que nada. O que é a virgindade daquela que quer ser virgem, para ser de Deus, mas sabe sé-lo só no
corpo e não no espírito, no qual deixa entrar muitos pensamentos estranhos, acaricia e aceita as
carícias de pensamentos humanos? Isto já começa a ser uma máscara de virgindade, mas muito
pouco ainda. O que é a virgindade de uma enclausurada, que vive só para Deus? É muito. Mas,
mesmo assim, ainda não é uma virgindade perfeita, se comparada com a virgindade da minha mãe.
Sempre existiu um enlace, até mesmo no mais santo. O enlace da origem, entre o espírito e a Culpa.
Só o Batismo o desfaz. Mas, é como uma mulher separada do marido pela morte, não restitui mais
em si a virgindade total, como a virgindade dos nossos Primeiros, antes do Pecado. Uma cicatriz
permanece, e dói ao ser lembrada, e está sempre pronta para reabrir-se em ferida, como certas
doenças que periodicamente voltam com seus vírus, ainda mais ativos. Na virgem não fica esse
sinal de um enlace dissolvido com a Culpa. Sua alma apresenta-se bonita e intacta, como quando
estava na mente do Pai, e reúne em Si todas as Graças.
É a virgem, a única, a perfeita, a completa, foi assim pensada, gerada, querida, coroada. É
eternamente a virgem, o abismo da intocabilidade, da pureza, da graça que se perde no Abismo do
qual brotou: em Deus, intangibilidade, pureza e graça perfeitíssima.
Aí está a desforra do Deus Trino e Uno. Contra suas criaturas profanadas, Ele ergue esta Estrela de
perfeição. Contra a curiosidade doentia, esta se esquiva, recompensada em poder amar somente a
Deus. Contra a ciência do mal, esta sublime ignorante. Nela não existe somente a ignorância do que
é um amor aviltado; não há também somente a ignorância do amor que Deus havia dado aos
esposos. E ainda mais. Nela há a ignorância das concupiscências, herança do pecado. Nela há
somente a sabedoria gélida, mas incandescente, do Amor divino. Fogo que protege de gelo a carne,
para que se torne espelho transparente no altar onde um Deus desposa uma virgem, e não se avilta,
porque sua Perfeição abraça aquela que, como convém a uma esposa, só em um ponto é inferior ao
esposo, sendo-lhe sujeita por ser mulher, mas é sem mancha, como Ele”.
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